Suicídio: de Durkheim a Shneidman, do determinismo social à dor psicológica individual

0
349
Rate this post

Resumo

Numa homenagem a Edwin Shneidman, recentemente falecido, o autor faz uma revisão de alguns dos aspectos mais importantes da suicidologia, desde a “visão macro por fora” de Durkheim, do final do Século XIX, até à “visão micro por dentro”, de Shneidman, do Século XXI. Nesta viagem percorre diversas correntes psicodinâmicas, cognitivas, sistémicas, neurobiológicas, da mente e do cérebro. Aborda especificidades do suicídio em Portugal, fala da Consulta de Prevenção do Suicídio dos Hospitais da Universidade de Coimbra e da criação da Sociedade Portuguesa de Suicidologia, em 2000, e ainda apresenta subsídios para um Plano de Prevenção do Suicídio em Portugal.

Palavras-chave: Suicídio; modelos suicidas; Durkheim; Shneidman; Consulta de Prevenção do Suicídio; Sociedade Portuguesa de Suicidologia; Plano de Prevenção do Suicídio em Portugal

Abstract

As homage to the recently deceased Edwin Shneidman, the author reviews some of the key concepts related to the history of suicidology, such as Durkheim´s outside “macro view” of suicide in the XIX century and Shneidman´s inside “micro view” in the XXI century. Throughout this article the author will address several perspectives including the psychodynamic, cognitive, systemic, neurobiological mind and brain overall. It will also be approached the subjects of suicide in Portugal, the foundation of the Suicide Research and Prevention Unit and of the Portuguese Society of Suicidology in 2000 and some guide lines for the Suicide Prevention Plan in Portugal.

Keywords: Suicide; suicide models; Suicide Research and Prevention Unit; Portuguese Society of Suicidology; Suicide Prevention in Portugal

__________________________________
(1) Professor de Psiquiatria da FMUC, Chefe de Serviço de Psiquiatria dos HUC, Coordenador da Consulta de Prevenção do Suicídio, Ex-Presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia

1. A sociologia, a partir de Émile Durkheim

A morte recente do americano Edwin Shneidman, já no Século XXI (2009), considerado um dos maiores investigadores da área do suicídio, talvez possa fechar um ciclo iniciado com Émile Durkheim no final do Século XIX (1897), o sociólogo francês pioneiro na abordagem do suicídio segundo uma vertente social.
Émile Durkheim (1858-1917) nasceu em Épinal, na Alsácia, e morreu em Paris. Filósofo de formação, estudou na Escola Normal Superior de Paris. Notabilizou-se pelas teorias da coesão social e pela obra “Le suicide” (1897). Outros trabalhos relevantes: “Da divisão do trabalho social” (1893), “Regras do método sociológico” (1895), “Formas elementares da vida religiosa” (1912). Fundou ainda a revista “L´Année Sociologique”. Para muitos, é considerado o pai da sociologia.
O suicídio tido como fruto do progresso, da industrialização, da instrução, da civilização, seria o ponto de partida de Durkheim naquela obra que o notabilizou em 1897. De raízes filosóficas, o investigador enveredaria rapidamente para a busca das bases científicas das Humanidades, inspirado principalmente em Augusto Comte e Herbert Spencer. Valorizaria duas grandes dimensões para a tentativa de compreensão do fenómeno suicida: integração e regulação; a integração, como as relações sociais que ligam o individuo ao grupo, e a regulação, como os requisitos normativos ou morais exigidos para a pertença ao grupo. Portanto, teórico dos “factos sociais”, que deveriam ser tratados como “coisas”, e da “consciência colectiva”, como uma entidade moral superior ao indivíduo, para Durkheim todo o comportamento humano, desde o sentir, o pensar, o agir, seria, enfim, determinado pela sociedade. Donde, os factores macrossociais serem essenciais ao Homo Sapiens Sapiens, como ser gregário que é, e o interesse das variáveis religião, família, profissão, etc. em detrimento de tudo o que se passa no psiquismo do indivíduo enquanto membro isolado da sociedade.
Durkheim definiria suicídio como todo o caso de morte que resulta directa ou indirectamente de um acto positivo (ex: enforcamento) ou negativo (ex: greve de fome) praticado pelo indivíduo, acto que a vítima sabia dever produzir este resultado. As suas teorias empíricas do suicídio assentariam basicamente nas variações das taxas de suicídio (nº de mortes por suicídio/100.000 habitantes/ano) em diferentes grupos e em diferentes períodos de tempo. Para o efeito, utiliza o método das variações concomitantes. De entre as suas primeiras constatações, diferenças entre solteiros e casados, entre rurais e urbanos, destacou-se também a discrepância das taxas de suicídio entre Protestantes e Católicos. Mais elevadas nos primeiros, devidas a um maior individualismo e menor integração. Acerca deste último conceito também especularia sobre o seu contrário; isto é, quando há excesso de integração, exemplificado no caso das viúvas hindus. Aqui seria a força da tradição, relacionada com questões de honra e de moral, que as compeliria a lançar-se na pira funerária do marido, embora existam relatos de coacções da parte de familiares ou terceiros, que remontam ao Século XVI, o que prejudicaria a espontaneidade de tais actos. Estas eventuais incongruências seriam, aliás, motivo de clivagens dentro da sociologia, como apontaria Maurice Halbwachs trinta anos depois.
Para além das forças de coesão da religião, valorizando mais o normativo colectivo e a integração como factores protectores do suicídio, Durkheim traria para a sociologia o conceito singular de anomia. Ou seja, da perda de normas, segurança, estabilidade e amparo, consequência de um estado patológico da sociedade. Um indivíduo ignorado, excluído, marginalizado, pobre, numa sociedade que lhe exige deveres e lhe concede alguns direitos, sente-se fora da solidariedade orgânica devida a uma parte que é pertença de um todo. Como se uma árvore não fizesse parte da floresta. A anomia poderia, então, ser interpretada como o principal inimigo da sociedade.
O conceito de fatalismo surgiria ulteriormente. Significaria a perda do controlo devido ao excesso de regulação exercida sobre o indivíduo, ou seja, vítima de opressão mental e física.
Em síntese, no final, Durkheim conceptualizaria quatro tipos de suicídio:
  • Suicídio egoísta – Baixa integração na sociedade
  • Suicídio altruísta – Alta integração na sociedade
  • Suicídio anómico – Baixa regulação da sociedade
  • Suicídio fatalista – Alta regulação da sociedade
Um dos exemplos de suicídio egoísta residiria no indivíduo deprimido. O suicídio altruísta seria retratado, no século XX, nos pilotos kamikaze ou nos bombistas suicidas. O suicídio anómico corresponderia aos casos de desempregados e divorciados. O suicídio fatalista poderia ser representado no suicídio de escravos, prisioneiros, indivíduos cercados.
A teoria de Durkheim tem sido posta à prova ao longo dos anos. Ou pelo contrariar da concepção metafísica da sociedade, ou pelo contestar da sociedade como comunidade moral, ou ainda pela não-aceitação do conceito de consciência colectiva… Um dos seus primeiros críticos, Maurice Halbwachs (1930) referiu que as taxas de suicídio resultavam não só das correntes colectivas mas também das circunstâncias individuais. Havia nitidamente já um compromisso entre o macro social e o micro individual. Considerou ainda que sacrifício não seria um verdadeiro suicídio a partir do momento em que a vontade individual estivesse mitigada. Esta posição advinha, por exemplo, dos casos de sati ou mártires religiosos orientais, onde existiria um prejuízo da capacidade para o livre arbítrio e, portanto, uma submissão à pressão do grupo. O mesmo autor sugeriria que as taxas de suicídio deveriam atender aos níveis de urbanização da sociedade. A ausência de integração social nas cidades poderia ser perniciosa, tema retomado mais tarde por Sainsbury (1971) em Londres, quando fala do isolamento e da desorganização social dos bairros.
Um outro crítico, Douglas (1967), referiu-se a subjectividades diversas quer na colheita de dados em períodos diferentes quer na definição de suicídio e seus limites, condicionada por pressões culturais de grupos poderosos. É assim que contestará a fiabilidade dos dados estatísticos oficiais nos EUA porque reflectiriam os registos dos “coroners”, ou seja, estavam contaminados pela subjectividade dos seus juízos de valor. O autor prefere, então, olhar o suicídio como um constructo social (teoria dos constructos sociais) em que o mais relevante seriam as dimensões gerais dos significados do fenómeno suicida. Isto é, no Ocidente o suicídio assumir-se-ia sempre como um acto significativo. Foi ainda naquele sentido, acerca do problema dos registos, que Clark (1989) chamaria a atenção para a falta de rigor dos dados estatísticos do suicídio por motivos religiosos, entre outros, com todas as implicações inerentes. Retterstol (1993) comparou os dados do Quebec, predominantemente católico, com os dados de outras regiões do Canadá, maioritariamente protestantes, e não encontrou diferenças nas taxas de suicídio. Pescosolido (1990) valoriza o benefício do apoio das comunidades religiosas e das redes sociais.
Powell (1958) e Ginsberg (1966) referiram-se à relação entre o suicídio anómico e a frustração pela não melhoria do estatuto social. Porterfield & Gibbs (1960) não só confirmam esta conclusão como também alertam para a possibilidade de um aumento do estatuto social poder originar uma ansiedade perturbadora. Henry & Short (1971) falam mesmo do risco elevado de suicídio nas classes altas em períodos de crise económica.
Palmer (1972) valoriza a reciprocidade dos membros da sociedade que levaria a uma maior regulação e integração, o que favoreceria a prevenção do suicídio. Lester (1989) estudou 47 sociedades e verificou uma correlação positiva entre baixa integração e suicídio. Fernquist & Cutright (1998) investigaram 21 países (1955-1989) e demonstraram a importância da religião e da família como factores protectores do suicídio. Stockard & O´Brien (2002) encontraram em 14 países ocidentais quer uma baixa integração quer uma baixa regulação no suicídio.
Em relação aos imigrantes foi descrita uma maior privação de contactos sociais, alienação, insegurança e discriminação, que poderiam justificar taxas mais elevadas de suicídio (Lester, 1987).
Jean Baechler (1975) define suicídio como um comportamento que busca e encontra solução para um problema existencial que atenta contra a vida do sujeito. O autor considera quatro tipos de suicídio:
  • Evasivo (ou “escapista”)
  • Agressivo,
  • Oblativo
  • Lúdico.
São ainda percebidos 11 subtipos. Assim, o evasivo divide-se em fuga (de situação), luto (após perda) e castigo (expiação); o agressivo divide-se em crime (arrastar outro ou outros), vingança (culpa sobre outrem), chantagem (pressão sobre outrem), apelo (aviso e manipulação); o lúdico divide-se em sacrifício (atingir valor superior à vida); passagem (busca de algo mais agradável); o lúdico divide-se em ordálico (julgamento dos deuses); jogo (brincar com a vida). Esta concepção é não só singularmente engenhosa como instrumental. Ou seja, pode ser aplicada na observação clínica de doentes que cometeram tentativas de suicídio, como acontece na Consulta de Prevenção do Suicídio dos Hospitais da Universidade de Coimbra.
Recentemente, ainda a propósito das teorias sociais do suicídio, Makinen (2009) perguntou, comparando a elevada taxa anual de suicídio da Lituânia (cerca de 40 por 100.000 habitantes) com a da Grécia (cerca de 4 por 100.000 habitantes), se é possível reduzir em 90% o número de suicídios daquele país báltico, conhecidos os factores envolvidos. Neste ponto convirá recordar aquilo que é consensual no âmbito da suicidologia: o suicídio é o acto mais intrigante do ser humano, confluência de múltiplos factores. Fora e dentro do indivíduo. Donde a resposta ser naturalmente insatisfatória.
Numa outra perspectiva da psicologia social, no Século XX, é clássico o trabalho de David Phillips (1974) ao compilar notícias de primeira página de suicídios do jornal “New York Times”, entre 1946 e 1968, ao mesmo tempo que examinava os dados estatísticos do suicídio. Constatou um aumento de casos logo no mês seguinte e a esse fenómeno chamou “Efeito Werther”, nome do famoso livro do alemão Goethe, do Século XVIII, que havia desencadeado uma onda de suicídios na Europa, principalmente em jovens românticos.
Também ainda a nível da psicologia social um apontamento é devido aos suicídios colectivos de seitas religiosas. No Século XX são usualmente referenciados três, com um somatório de mais de mil mortos: as seitas dos pastores Jim Jones, Guiana (1978), David Koresch, EUA (1993), Luc Jouret, Suiça e Canadá (1994).
Chegados ao Século XXI: a anomia está de novo na ordem do dia. Facilmente se compreenderá, à luz dos novos tempos, um desencanto e insatisfação entre as expectativas e a dura realidade política, social e económica, vista na chamada “crise” que atravessa a maioria dos países. É admissível que, nos tempos que correm, pela primeira vez os filhos possam viver com menos recursos e menos proventos que os pais. Com menos esperança. Talvez mesmo com mais desespero. Tudo isto para além da quebra de valores tradicionais, de que são exemplos a elevada taxa de divórcios, o desemprego, a baixa nupcialidade, uma menor natalidade, uma maior criminalidade violenta, o agnosticismo, etc. Esta é a anomia do século XXI. Contudo, aqueles aspectos já haviam sido referenciados na década de 80, do Século XX, por Sainsbury, Jenkins & Levey (1982) quando procuraram compreender o que se estava a passar em 18 países europeus em relação à geração anterior face a um crescendo das taxas de suicídio. As conclusões apontaram precisamente para o aumento do número de divórcios, baixa percentagem de jovens com menos de 15 anos, mais mulheres a trabalhar fora de casa, mais indivíduos acima dos 65 anos, maior consumo de bebidas alcoólicas, desemprego, aumento dos homicídios, declínio de práticas religiosas.

2. Alguns números recentes

Após a queda do muro de Berlim em 1989 e do desmembramento da União Soviética em 1991 saltaram à vista as elevadas taxas de suicídio daquelas repúblicas, depois países independentes, com destaque para a Lituânia, Rússia e Bielorrússia, com taxas anuais acima de 30. Seguiam-se, por ordem decrescente, países de leste e bálticos: Eslovénia, Hungria, Estónia, Ucrânia e Letónia com taxas anuais acima de 20. O primeiro país fora da Europa neste trágico ranking dos suicídios é o Japão, com uma taxa aproximada de 13 (In www.spsuicidologia.pt).
Portugal mantém uma taxa anual de suicídio aproximada de 10, ou seja, quase o dobro do que ocorreu na última década do Século XX. O ano de 2002 revelaria, no passado recente, a viragem para os dois dígitos da taxa de suicídio. Pela primeira vez as mulheres ultrapassaram os 200 suicídios e também pela primeira vez se atingiu a cifra de 60 suicídios em jovens, dos 15 aos 24 anos. Apesar das taxas de suicídio em Portugal só ocasionalmente atingirem os dois dígitos nos últimos 50 anos (exs: 1967; 1984; 2002; 2003; 2004; 2007; 2008), o que desperta no nosso país alguma perplexidade é a marcada e persistente assimetria entre o Norte e o Sul, tão claramente evidenciada pelo sociólogo Eduardo de Freitas na década de 80. Ao Norte, taxas baixas, ao Sul, taxas elevadas, discrepância muito peculiar mesmo a nível internacional, para um país pequeno como Portugal. Por exemplo, a diferença entre o Baixo Alentejo e o Minho pode ser de 10 vezes mais. A linha que divide este “dualismo do desespero” é o paralelo que passa por Santarém, “fronteira” preferível ao rio Tejo de modo a incluir a Grande Lisboa. Convocados para uma explicação, psiquiatras e sociólogos parecem estar de acordo em relação ao que se passa no Alentejo: isolamento (mais que a desertificação, que também ocorre nas Beiras e Trás-os-Montes), população envelhecida (os jovens emigram para o estrangeiro ou para a região de Lisboa ou Algarve litoral), baixos níveis de instrução e escolaridade, baixa nupcialidade, divórcios, desemprego, pobreza, baixa religiosidade, desesperança, alcoolismo, depressão e personalidade melancólica (geneticamente marcadas ou mais susceptíveis a modelos de suicídio na família ou na comunidade), falta de apoios médico-sociais. Certamente não estando aqui incluídos todos os factores de risco, é de relevar ainda aspectos culturais retratáveis nestes comentários assaz comuns perante um suicida no Alentejo: “desistiu de viver”, “renunciou à vida”, “deixou de sofrer”. Um misto de resignação, fatalismo, e compreensão no seio das famílias.
O perfil do suicida em Portugal tem-se mantido ao longo dos anos: homem, com mais de 50 anos, a viver na Grande Lisboa, Alentejo ou Algarve, separado, divorciado ou viúvo, desempregado ou reformado, com escassos rendimentos, com baixos níveis de instrução, socialmente isolado, sem práticas religiosas, deprimido e alcoólico (com história de passado psiquiátrico), em comorbilidade com perturbação da personalidade, psicopatologia por vezes associada a doença crónica dolorosa ou incapacitante, com múltiplos problemas afectivos, com ideação de morte ou suicida prévias, incluindo tentativas de suicídio, que põe termo à vida por método violento como o enforcamento, arma de fogo, pesticidas, precipitação, afogamento, trucidação por comboio, na Primavera ou no Verão. Este padrão etário do suicídio em “curva ascendente”, em que as taxas aumentam com a idade, foi por nós evidenciado (Alte da Veiga & Saraiva, 2003) em contraste com outros três tipos de padrões europeus: “curva descendente” (taxas mais elevadas nos jovens; ex: Inglaterra), “curva convexa” (taxas com “pico” na meia-idade; ex: alguns países de Leste) e “curva uniforme” (taxas sensivelmente iguais ao longo do ciclo de vida; ex: países nórdicos).
A questão porque há mais suicídios na Primavera e no Verão, em Portugal, mais precisamente de Maio a Julho, permitiu-nos uma especulação. Do empirismo clínico conhecem-se as depressões do “rebentar da flor” e as do “cair da folha”, independentemente da sua gravidade. Enquanto no Outono o humor depressivo está em sintonia com a Natureza (triste por dentro, triste por fora), na Primavera o contraste é acentuado (triste por dentro, alegre por fora). E isso tornaria a dor psicológica mais intolerável (Saraiva, 2006, p.86).

3. Os modelos psicodinâmicos

O reconhecimento das experiências traumáticas individuais permitiu a construção de modelos psicodinâmicos. A análise intrapsíquica e o inconsciente forneceriam uma outra compreensão para o suicídio que as teorias sociais não alcançavam. Portanto, uma nova “visão micro” sobre o psiquismo do indivíduo. Segismund Freud, o pai da psicanálise, teorizou sobre a sexualidade e a suicidalidade, nesta última vertente mais a partir do trabalho Luto e Melancolia (1917). Freud distinguiria duas espécies de instintos: os instintos sexuais (Eros), permanentemente renovadores da vida, e os instintos de morte (Thanatos), diferentes do desejo agressivo de matar outrem porque corresponderiam a uma tendência inata do indivíduo para a autodestruição. Os sentimentos de culpa e de autorecriminação estariam intrinsecamente implicados no processo de luto. Vejamos um exercício de síntese: “Chorar a perda de uma pessoa querida é normal. Mas, na depressão psicótica, a mágoa do doente esconde sentimentos inconscientes e ódio. Uma vez que ele não pode aceitar esses sentimentos, o objecto de amor perdido identifica-se com o próprio ego do doente. Então, o que é que acontece? O ódio inconsciente, em vez de se dirigir para o objecto de amor perdido, é desencaminhado contra o próprio doente. A culpa depressiva e a autorecriminação baseiam-se numa regressão anormal ao narcisismo infantil” (Appignanesi & Zarate, 1981, p. 140).
Após a I Grande-Guerra (1914-1918), depois de tomar conhecimento da brutalidade dos combates, exemplificada na utilização do gás mostarda e nos sangrentos ataques de baioneta, Freud consideraria em “Além do Princípio do Prazer” (1920) a existência de pulsões de morte que, juntamente com as pulsões de vida, passariam a dirigir o funcionamento psíquico. Ou seja, com a teoria das pulsões haveria um afastamento e uma menorização das teorias da sexualidade. Escreveria mesmo: “ Tudo o que vive morre por razões internas. Torna-se mais uma vez inorgânico. Seremos então compelidos a dizer que o objectivo de toda a vida é a morte” (p. 49).
A ideia de um superego sádico e de um ego masoquista surgirá posteriormente na obra “O Ego e o Id” (1923). As necessidades de punição e sofrimento acabariam por ser assim satisfeitas.
Karl Menninger (1938), da segunda geração psicanalítica, aprofundará a teoria psicanalítica do suicídio. Como o homicídio do próprio. Particularmente conhecidos os três desejos que encerraria todo o suicida:
  • De matar;
  • De ser morto;
  • De morrer.
No primeiro, haveria uma agressão baseada no instinto de agressão ou destruição; no segundo, uma resposta do superego à necessidade de punição por sentimentos de culpa ou submissão masoquista; no terceiro, o desejo de regressar ao ventre materno, num impulso suicida transitório. Uma outra perspectiva em Menninger é o entendimento de que qualquer comportamento autolesivo é uma forma de suicídio. Distingue três tipos: suicídio crónico, exemplificado nos psicóticos, anti-sociais, etc.; suicídio focal, exemplificado nos auto-mutiladores; e suicídio orgânico, exemplificado no individuo portador de doença somática causada por uma vontade inconsciente de morrer.
Melanie Klein (1935), ainda que concordando com a ideia inicial de Freud de que o suicídio é um ataque ao objecto internalizado, propõe, todavia, que esse ataque é selectivo e visa simultaneamente aniquilar a parte má do objecto e preservar a parte boa, que seria valiosa para o self. Conforme se compreenderá esta teorização tem um interesse acrescido para a explicação de algumas condutas de automutilação. Na sua teoria da relação objectal, uma das clássicas clivagens da Escola Psicanalítica, a autora, ao contrário de Freud, destaca sentimentos diversos como a paixão, ódio, inveja, etc. que seriam essenciais à possibilidade de deslocamento da agressão, mas só depois do estabelecimento de tal relação complexa. E isso seria determinante. De facto, para Freud tudo era mais universal e impessoal.
Gregory Zilboorg (1936), o psicanalista ucraniano que viveu em Nova Iorque, valoriza um modelo etnocultural de identificação com o morto, o que impulsionaria o desejo de um suicídio por reunião. Este aspecto é muito relevante em determinadas datas-chave (aniversário da morte, dia de finados, Natal, Páscoa, etc.), situações conhecidas da prática clínica na área dos comportamentos suicidários. Outros autores sugeririam a possibilidade do suicídio ser interpretado como uma morte por reunião, ao mesmo tempo que falam de autoraiva, expiação, sensação de omnipotência, testar o controlo sobre a morte, renascimento (Hendin, 1963).
Quando nos debruçamos sobre os neofreudianos ( exs: Alfred Adler, Karen Horney, Erich Fromm, Harry Stack Sullivan) verifica-se não só uma libertação do determinismo biológico mas também a valorização dos aspectos humanos das relações. Ou seja, uma forte contestação dos clássicos princípios e concepções de Feud, como a teoria da libido, as pulsões, os recalcamentos, etc. Por exemplo, Adler interpretava o suicídio como um fracasso. Um sinal de patologia social, de isolamento, de falta de cooperação social, onde cresciam o egoísmo e o egocentrismo. Para Horney, o suicídio ocorreria por causa da personalidade neurótica devido a conflitos da infância. Onde em criança houve falta de amor. Fromm interpretava o suicídio dentro do pessimismo sobre a vida, porque o ser humano foi alienado e transformado numa coisa. Sem sentido de self, não haveria vida para viver. Em Sullivan, o suicídio é um acto de agressão, uma hostilidade para com vários, para fora e para dentro do indivíduo. Há sempre uma mensagem. Mesmo para o futuro, para os vindouros (Mikhailova, 2004, cit. Moreira, 2008).
Donald Winnicott (1971) e Heinz Kohut (1977) representam a terceira geração psicanalítica. O primeiro descreverá a importância da boa relação com a mãe como essencial à organização do ego. Também fala de um self verdadeiro e de um self falso, em que a falência deste pode levar ao suicídio. O segundo enfatiza a ausência de empatia dos pais, fruto da sociedade contemporânea, mas valoriza o espaço da criança a caminho da maturidade. Só que isso contém riscos. Como um “self trágico” ou “ansiedade de desintegração”.
O sociólogo Anthony Giddens (1971) teoriza sobre a culpa (clivagem entre o ego e o superego) e a vergonha (clivagem entre o ego e o ideal do ego), a partir de modelos sociais e psicanalíticos.
Em Portugal, Coimbra de Matos (1982) enuncia quatro aspectos masoquistas e narcisistas explicativos do desejo de morrer:
  • Obter o amor total e duradouro do objecto (desejo de fusão);
  • Vulnerabilidade narcísica;
  • Intolerância à dor da perda com aumento do penar para obter perdão e amor;
  • Impossibilidade de suportar o orgulho ferido e a derrocada da omnipotência.
Daniel Sampaio (1986) também se referirá à importância do renascimento, principalmente nas tentativas de suicídio dos adolescentes, para além de outras possibilidades, que denominou apelo, desafio e fuga.
Nós próprios elaborámos um modelo conceptual do parassuicídio em que considerámos a rejeição como a questão nuclear. Dentro das narrativas valorizámos aquilo a que denominámos por “rejeição sentencial familiar”. Confluência de aspectos neurofisiológicos, sociais e cognitivos, a impulsividade emanaria da hostilidade, activada pela rejeição. As “fugas” seriam ou “parabólicas” ou “elípticas” mas não lineares numa direcção errática para o longínquo “cosmos”, porque o objectivo não seria a morte tida como uma aniquilação (Saraiva, 1997; 1999).
Eduardo Sá (2001) refere que ninguém se mata para morrer, mas antes como forma desesperante de comunicar a dor. Considera cinco formas de comportamentos suicidários:
  • Desespero do abandono (separação sentida como queda no abismo);
  • Raiva narcísica (impulso para a morte);
  • Ruminação obsessiva (ninguém consegue entender ou ajudar);
  • Para destruir a dor (dor aguda que absorva toda a vida interior);
  • Para destruir as pessoas que foram abandónicas (vingança).

4. Os modelos cognitivos

Para os cognitivistas o importante é o significado que o indivíduo atribui aos acontecimentos e ao ambiente. A teoria cognitiva clássica de Aaron Beck assenta principalmente em três aspectos: tríade cognitiva, esquemas e distorções. No primeiro existe uma visão negativa do eu, do mundo e do futuro (ex: “eu não presto, sou um inútil, um fracassado; o mundo lá fora é feio, perigoso e hostil; já só espero coisas más na vida”). No segundo existem padrões de comportamento relativamente estáveis em relação ao próprio, aos outros e ao meio. No terceiro surgem erros de interpretação e avaliação (exs: inferência arbitrária, abstracção selectiva, pensamento dicotómico, catastrofização, etc.). Foi também a partir da Escola de Beck que se desenvolveria, principalmente na década de 70, o conceito de desesperança aplicada ao suicídio e às tentativas de suicídio. Diversos instrumentos psicométricos, como a Escala de Desesperança ou a Escala de Intenção Suicida, ocupariam lugar de relevo em muitos trabalhos de investigação. Recentemente, Wenzel, Brown & Beck (2008) reafirmaram que os esquemas são estruturas internas compostas por estímulos, ideias ou experiências, usadas para organizar novas informações de modo compreensivo. No caso particular dos esquemas suicidas surgiriam crenças relacionadas com a desesperança e a súbita intenção de morrer por suicídio.
No modelo inicial de diátese-stress-desesperança de Schotte & Clum (1982) é a rigidez cognitiva que leva o indivíduo a não ser capaz de utilizar mecanismos de “coping” adaptativos, ou seja, mais eficazes, perante acontecimentos de vida geradores de stress. Daí a desesperança e a possibilidade de ideação ou condutas suicidas. Mais tarde, Maris (2002) enfatizaria a associação desesperança-rigidez cognitiva como a principal dificuldade em encontrar alternativas para a resolução de problemas.
Roy Baumeister (1990) valoriza a culpa e a identidade. Refere que o suicídio é um esforço para escapar de uma dor psicológica intensa. Ou seja, o que se pretende é fugir de afectos internos negativos, o que seria acompanhado por aquilo que designou de desconstrução cognitiva.
Marsha Linehan (1993), na sua terapia comportamental dialéctica, propôs que a desregulação emocional é central à compreensão dos comportamentos suicidários. Trata-se de um modelo mais orientado para intervenção sobre os “borderline”. Os objectivos principais são: trabalhar os aspectos dialécticos da mente; conhecer os défices de aptidões na resolução de problemas; validação da esperança com vista à mudança. A autora identificou dois subsistemas: ambiental e comportamental. No primeiro residem os apoios, os modelos suicidas; no segundo incluem-se elementos afectivos e cognitivos. É, portanto, também uma abordagem biológica e fisiológica.
A teoria dos modos viria a ser desenvolvida inicialmente por Beck em 1996 e posteriormente por Michael Rudd (2000) na chamada teoria dos modos suicida. Os modos são unidades de estruturas cognitivas que contêm os esquemas. O constructo abarca suborganizações da personalidade onde estão não só as cognições mas também os afectos, as motivações. Como vimos, os modos são formados por esquemas (exs: convicções, crenças) relacionados com as memórias, experiências de vida, condutas, resolução de problemas. Quando os modos são disfuncionais irrompem, por exemplo, elevados níveis de ansiedade e pensamentos irracionais. O autor fala da existência de um modo suicida em indivíduos com ideação suicida. Vejamos exemplos dos aspectos supracitados:
  • Sistema cognitivo: “A minha vida já deu o que tinha a dar”;
  • Sistema afectivo: “Ninguém gosta de mim”;
  • Sistema motivacional: “Vai ser com esta corda”.
Rudd valoriza ainda a activação fisiológica do modo suicida bem como eventuais recorrências. Para além de modos suicidas descreve modos facilitadores e respectivos desencadeantes (“gatilhos” internos, exemplificados nos pensamentos, e externos, exemplificados nas circunstâncias).
Na teoria da vulnerabilidade fluida, o mesmo Rudd (2006), inspirado na anterior teoria dos modos para a qual contribuiu, parte da assunção que as crises suicidas são limitadas no tempo. Os eventuais factores desencadeantes seriam fluidos e não estáticos (activados ou desactivados). As vulnerabilidades do indivíduo poderiam ser identificáveis e quantificáveis. O autor considera quatro componentes, interdependentes e interactivos: cognitivo, afectivo, fisiológico e comportamental. Uma possibilidade sequencial seria: “Eu não mereço viver”, “Eu não consigo enfrentar este problema”, “Eu não aguento mais esta dor”, “Eles ficariam melhor se eu morresse”. Existe nesta teoria uma especial valorização daquilo que chama sistema de crença suicida como um eventual precipitante da activação daquele primeiro componente.
Na teoria interpessoal-psicológica, Thomas Joiner (2005) refere que o desejo de morrer é função de três constructos: o sentimento de não pertença, a sensação de ser um “fardo” para a família ou outrem e a ausência do medo instintivo da morte. O autor fala de uma desconexão e isolamento do suicida, uma forma de alienação social.
Williams et al. (1996; 2006) interpretam o suicídio como uma reacção a um stress sentido como uma “ratoeira” sem escapatória num indivíduo que manifestaria desesperança e prejuízo na resolução de problemas. Na sua teoria da sobregeneralização da memória, desenvolvida a partir de trabalhos anteriores, propõem que no processo suicida haveria um défice das memórias autobiográficas. Seria difícil evocar razões para viver. Existiria uma evidência empírica de ligação a traumas de infância ou adolescência. Eis, em síntese, as consequências da sobregeneralização das memórias em relação à suicidalidade:
  1. Episódios de perturbações emocionais que perduram por mais tempo levam a dificuldades na resolução de problemas.
  2. E também a consequências sociais.
  3. E a limitações sobre o pensar o futuro e o sentir esperança.

5. Os modelos sistémicos

Os comportamentos suicidários despertam quase sempre estranheza e perplexidade. Aqui se incluem familiares e amigos. Muitas perguntas, escassas respostas. Umas vezes, dramatismo excessivo; outras, um pacto de silêncio. Há mesmo situações de suicídio que logo se transformam em “memórias proibidas”, que passam de pais para filhos. Estigmas e tabus alimentam tal secretismo. Pela culpa, vergonha, ou outros sentimentos emaranhados, às vezes difíceis de definir.
Desde a década de 60 do Século XX que se conhecem factores neurobiológicos relacionados com o suicídio, a agressão, a impulsividade. E também as suas repercussões sobre o hipocampo, a amígdala, o córtex pré-frontal… Mas certamente seria muito redutor não valorizar outras dimensões. Onde está, inevitavelmente, a família. “Quem está lá em casa?” ou “Com quem vive?” são passos essenciais da história clínica. Ousemos uma hipótese académica: um homem numa ilha deserta manifestaria o mesmo comportamento suicidário, cerceado que estava no seu “instinto de plateia”, na expressão do psicodramatista brasileiro Alfredo Soeiro? Sem que pudesse representar os papeis de desamparado ou desesperado? Ou exercícios de manipulação sem que haja outros protagonistas para o jogo da análise transaccional? (Saraiva, 2007).
Na verdade, o empirismo clínico ensina que perante um suicida ou parassuicida é frequente a existência de uma família-problema ou disfuncional. Várias designações têm surgido: rígidas, obstinadas, conflituosas, desagregadas, distantes, frias, etc. Estes aspectos, na perspectiva da teoria da emoção expressa de Julian Leff e Christine Vaughn (1985), foram estudados em Portugal em famílias de jovens parassuicidas por José Carlos Santos (2006). Num período catamnéstico de nove meses, o autor encontrou demasiados comentários críticos e sobreenvolvimento emocional da parte dos familiares, como factores de risco de recorrências parassuicidárias. Como factores protectores da parte do indivíduo sublinhou o “coping”, o autoconceito e o suporte social.
As famílias usualmente tendem a fazer uma atribuição externa em relação às condutas suicidas dos filhos adolescentes (Frazão & Sampaio, 2006). Muitas destas famílias doentes não percebem que o estabelecimento de trocas de afecto é essencial ao bem-estar dos seus membros. Por outro lado, as mensagens devem ser claras, verdadeiras e congruentes. O contrário poderá estimular o isolamento, potencialmente nefasto.
“Ninguém me entende” é uma frase comum. Quando nos debruçamos sobre os eventuais porquês ficamos a saber que também não está lá ninguém para ouvir. E perante outras frases do tipo “não ando aqui a fazer nada”, “sou um peso”, “qualquer dia eu desapareço”, nem o diálogo socrático se inicia. Uma sociedade não muito dada ao amparo ou à compaixão, sempre apressada, em fúrias de tudo ou nada, egoísta, demasiado hedonista, dificilmente consegue exercitar tolerâncias e concórdias.
A capacidade para pôr na palavra todos os sentimentos, inclusive para saber interpretar comentários hostis, por mais desestabilizadores que pareçam, é usualmente positiva. Uma família será mais saudável se souber estimular a adaptabilidade, a coesão e a regulação afectivo-comunicacional (Walsh & Scheinkman, 1993).

6. Os modelos biológicos

A disfunção da serotonina (5-HT) foi o grande foco de atenção do modelo neurobiológico desde a década de 60. Inicialmente em estudos post mortem e depois através de métodos in vivo em indivíduos que haviam cometido tentativa de suicídio por métodos violentos, por exemplo doseamentos de metabolitos de 5-HT no líquor. Neste ponto, destacaram-se os trabalhos de Marie Asberg e colaboradores, do Instituto Karolinska de Estocolmo, a partir década de 70.
Também a hiperactividade do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenais (HPA) há muito que é reconhecida como estando envolvida nas condutas suicidas. A 5-HT está associada à estimulação da hormona libertadora da corticotropina (CRH), por meio dos subtipos de receptores 5-HT1A, 5-HT1B, 5-HT1C e 5-HT2 (Owens & Nemerof, 1993; Brunner & Bronisch, 1999).
O colesterol é um precursor da síntese do cortisol. Foi encontrada uma relação entre hipocolesterolémia e um aumento do risco de condutas violentas ou agressivas (Golomb, 1998). As alterações do metabolismo do colesterol podem levar a um défice de 5-HT no cérebro (Brunner & Bronisch, 1999). Têm sido realizados estudos de polimorfismos de genes envolvidos quer na biosíntese quer no transporte do colesterol, havendo algumas expectativas para a relação entre a mutação do gene DHCR7 (7-Dihidrocolesterol redutase) e os comportamentos suicidários (Lalovic et al., 2004).
Em relação aos aspectos da genética do suicídio e do estado da arte, ao tempo, suscita interesse a revisão de Macedo et. al. (2002). Du et al. (2000) encontraram em doentes deprimidos com mutação do gene codificador do receptor 5-HT2A duas vezes mais tendência a tentativa de suicídio que noutros deprimidos.Entretanto, diversas investigações ulteriores confirmariam que os receptores sinápticos da serotonina mais envolvidos na suicidalidade seriam o 5-HTR1A e o 5-HTR2A (Albert & Lemonde, 2004; Norton & Owen, 2005). Com a utilização das novas tecnologias aplicadas às funções cerebrais, como a tomografia por emissão de positrões (PET), em associação a doseamentos do líquor, sangue e urina de neurotransmissores ou seus metabolitos, bem como trabalhos sobre as neurotrofinas, por exemplo, têm sido avançadas as áreas mais comprometidas nos comportamentos suicidários: núcleo dorsal do rafe (tronco cerebral), hipotálamo, amígdala, hipocampo, córtex pré-frontal (Haghighi et al., 2008).
A constatação das similitudes entre os finlandeses e os húngaros, visíveis por exemplo em sons linguísticos e em taxas de suicídio das mais elevadas do mundo, acima de 30, permitiram supor afinidades genéticas. Na verdade, tratar-se-ia do mesmo povo que terá vivido na região dos Montes Urais e depois emigrado, uns para Noroeste, outros para Sudoeste. Trabalhos na área da investigação de famílias, gémeos, emigrantes, comunidades fechadas religiosas como os Amisch (Pensilvânia, EUA), haviam também apontado para um provável envolvimento genético nas condutas suicidas. Portanto, curiosamente, ao contrário do que era dito ainda há alguns anos, não se trataria apenas da genética das principais doenças psiquiátricas que levam ao suicídio: a depressão, a esquizofrenia e o alcoolismo. Efectivamente, a descoberta da quase totalidade da sequenciação do genoma humano em 2003 abriu novos horizontes. Entre eles a identificação de genes candidatos. Ou seja, aqueles que estarão mais implicados em determinadas perturbações e cujo estudo é basicamente de associação. Já há 10 anos atrás Paul Hrdina, investigador de Otava, Canadá, estimou entre 10 a 15 o número de genes potencialmente envolvidos no acto suicida. Parecem interessar particularmente o gene da enzima triptofano hidroxilase (TPH), o gene do transportador da serotonina (5-HTT) e o gene da catecol-o-metiltransferase (COMT).
TPH: Controla a actividade de síntese da serotonina. Foram identificadas duas formas: TPH1 (década de 80) e TPH2 (início do Século XXI). A primeira está localizada no cromossoma 11p15; a segunda está localizada no cromossoma 12q21. Têm sido estudados polimorfismos do gene (A218C, A779C, A6526G) eventualmente relacionados com comportamentos suicidários, impulsividade e violência (Rujescu et al., 2003; Li & He, 2006).
5-HTT: Controla a disponibilidade da serotonina na fenda sináptica. Localizado na membrana pré-sináptica dos neurónios serotoninérgicos. Codificado pelo gene SLC6A4 localizado no cromossoma 17q12. Evidenciado polimorfismo. O mais estudado é o 5-HTTLPR. Foi encontrada uma significativa associação entre o alelo s e métodos violentos suicidários (Courtet et al., 2001; Lin & Tsai, 2004).
COMT: Degrada a dopamina, adrenalina e noradrenalina. Evidenciado polimorfismo no código do cromossoma 22q11. O alelo l parece ser mais frequente em indivíduos com tentativas de suicídio por método violento (Rujescu et al., 2003).
Entretanto, chegou a hora das neurotrofinas. As neurotrofinas são proteínas que pertencem a uma família de factores de crescimento que favorecem a sobrevivência de certos neurónios, ou seja, impedem, através da emissão de sinais, o início do programa de morte celular, a chamada apoptose. As principais: NGF (factor de crescimento nervoso/nerve growth factor), BDNF (factor neurotrófico derivado do cérebro/brain-derived neurotrophic factor), NT-1 (neurotrofina -1), NT-3 (neurotrofina-3), NT-4 (neurotrofina-4). Recentemente, alguns investigadores encontraram baixos níveis de BDNF em suicidas, designadamente no hipocampo (Dwidevi et al., 2003; Dawood et al., 2007). Um dos receptores onde as neurotrofinas actuam é o P75NTR. Um dos marcadores inclui um polimorfismo que transforma serina em leucina (S205L). É precisamente nesta área que a investigadora Alda Ambrósio se tem distinguido na busca de uma associação genética entre certos polimorfismos e as condutas suicidas. Sobre esta temática, o poster “Neurotrofinas e suicídio: associação entre o SNF S205L do gene P75NTR e o suicídio no sexo masculino” de Alda Ambrósio et al. (2010), seria galardoado com o Prémio Abbott II Products nas “8as Jornadas sobre Comportamentos Suicidários” (Luso, 2010), co-organizadas pela Consulta de Prevenção do Suicídio e pela Sociedade Portuguesa de Suicidologia.
Na verdade, existe actualmente em todo o mundo uma onda de investigação na área da genética e do suicídio. Nem sempre os resultados correspondem às expectativas. Mas o caminho faz-se caminhando, como disse o poeta Fernando Pessoa. Desejaríamos mostrar agora dois breves exemplos em que a procura só foi parcialmente conseguida ou ficou aquém. Yoshioka (2005) encontrou um polimorfismo do CCK (cholecystokinin gene) nas condutas suicidas, mas só para o sexo masculino. Mahon et al. (2010) não conseguiram confirmar a eventual relação entre o gene candidado TGOLN2 (trans-golgi network protein) da região 2p11-12 e as condutas suicidas de deprimidos.

7. A Consulta de Prevenção do Suicídio dos Hospitais da Universidade de Coimbra

Do ponto de vista clássico, sempre num perigoso exercício de síntese, há uma tríade relevante em suicidologia quanto à eventualidade de um determinado acto levar à morte: letalidade, exequibilidade e intencionalidade. Se os dois primeiros constructos parecem mais evidentes, diríamos menos filosóficos, em função da escolha do método suicida e da facilidade de o levar a cabo, o terceiro ancora nas profundezas da mente. Da vontade. Da consciência. Da luta interna.
Da outra face da “moeda” do suicídio encontramos o parassuicídio. Ou seja, um comportamento que, desfocadamente, se tem designado tentativa de suicídio. O parassuicídio é um acto de consequências não fatais, no qual o indivíduo inicia deliberadamente um comportamento que lhe causará dano ou lesão, ou ingere uma substância em excesso face à dose prescrita ou geralmente reconhecida como farmacologicamente activa e que visa a obtenção de mudanças através das consequências físicas reais ou esperadas. Um comportamento que parece ser uma linguagem de desamparo ou revolta através do corpo. Uma forma inadequada de esbater a tensão emocional, na ausência de outras ferramentas psicológicas para lidar com conflitos, perdas, fracassos. Em que, supostamente, a intenção suicida é inexistente, persistindo uma margem “cinzenta”, mínima que seja, relacionada com um dos aspectos mais complexos da suicidologia: a ambivalência. Tal visão da ambivalência cognitiva decorre frequentemente das narrativas de suicidas frustrados que conseguem transmitir mais tarde o que sentiram imediatamente antes do seu gesto. Excluir-se-ão, provavelmente, os casos raros de não impulsividade no gesto, se é que tal existe, perante um método suicida dito violento, sem possibilidade de retorno e com um esquema mental de um não hibernar ou de um não desligar. E também aquelas situações em que não se deixou grande margem de manobra ao destino para ser o árbitro do que vai acontecer. Viver ou morrer. Isto é, com maior inoculação da internalidade em detrimento da externalidade do locus de controlo (Saraiva, 1997; 1999; 2006; 2010).
Mas foi precisamente a partir da dimensão dos números do parassuicídio, bem retratada nos estudos epidemiológicos da Consulta de Prevenção do Suicídio, pioneiros em Portugal, isto é, 200 casos anuais por 100.000 habitantes, ou 600 casos anuais por 100.000 habitantes (Saraiva et al., 1996), se nos restringirmos apenas às mulheres dos 15 aos 24 anos, que em 1992 iniciámos esta consulta diferenciada. Inspirados na Escola de Oxford de Keith Hawton, também tirando partido de estágio por nós efectuado em Londres no King´s College Hospital, no Parasuicide Department, sendo director ao tempo Duncan McLean (um investigador que se destacaria ulteriormente pelos trabalhos na teoria da Mentalisation de Bateman-Fonagy), o objectivo prioritário é intervir sobre a chamada “crise suicidária”. Na maior parte dos casos esbate-se ao fim de um mês, o que não impede, todavia, recorrências futuras.
Entre 1994 e 1996 o grupo teve oportunidade de frequentar acções de formação, em Coimbra, de diversos colegas com experiência na área da personalidade e da suicidologia, entre eles, Anthony Mann, Daniel Sampaio e Duncan McLean. O ano de 1996 marca o início da nossa participação internacional, com trabalhos da equipa, Cambridge, Madrid e Budapeste. Também é o ano das 1as Jornadas sobre Comportamentos Suicidários.
Em relação à casuística, verificámos que cerca de 20% dos doentes já tinham cometido três ou mais parassuicídios antes da primeira consulta na Consulta de Prevenção do Suicídio. A quase totalidade dos doentes é oriunda do Serviço de Urgência. O principal instrumento de trabalho usado na Consulta de Prevenção do Suicídio é a EACOS, Entrevista de Avaliação de Comportamentos Suicidários, composta por 77 questões. Apresenta dimensões quantitativas e aspectos qualitativos. A valorização das narrativas é essencial ao compreender e explicar. A entrevista permite ainda indicadores sociométricos da família e amigos (Saraiva, 1998).
Apesar de um sempre possível ecletismo na intervenção terapêutica, é mais comum a abordagem cognitivo-comportamental e interpessoal. Nalguns casos foi indicado psicodrama. Até ao presente foram vistos mais de mil doentes, dos quais cerca de 50% são jovens (15-24 anos). Devido aos aspectos intrínsecos conceptuais sobre o que é o parassuicídio e à melhor homogeneidade da amostra, optamos aqui por mostrar apenas um brevíssimo retrato dos cerca de 500 jovens parassuicidas observados:
  • 19 Anos – Média de idades
  • 80% – Sexo feminino; classes baixas; discussão no plano dos afectos; reprovações
  • 70% – Intoxicação medicamentosa
  • 60% – Mau relacionamento familiar; doença psiquiátrica de familiar
  • 50% – Fumadores excessivos
  • 40% – Suicídio ou tentativa de suicídio na família; pedem ajuda depois do acto
  • 30% – Maus tratos na infância; sem actividades de grupo ou confidente; deixam carta
  • 20% – Vítimas de abuso sexual; abusadores de álcool; sem práticas religiosas
  • 10% – Intoxicação por pesticidas; auto-mutiladores; internamentos prévios em psiquiatria; educados em instituição
Propusémos uma tripla patologia para a generalidade deste tipo de doentes, mormente os recorrentes: do sentir, do tempo e do poder. Ou seja, sentem tudo muito excessivamente; lidam mal com o tempo, porque são impacientes e intolerantes; e a nível das relações de poder ficam desconfortáveis quando menorizados ou marginalizados, por exemplo, dentro da família (Saraiva, 1997; 1999).
Em relação às designadas auto-mutilações, conceptualizamos quatro grandes categorias, sendo a terceira a mais comum em psiquiatria (Saraiva, 2006, p.46):
  • Iniciáticas (identificação com o grupo; ex: “piercings”)
  • Religiosas (purificação; ex: crucificação)
  • Compulsivas (impulsivas; ex: corte superficial do pulso)
  • Psicóticas (expiação; ex: corte do pénis)
Do ponto de vista diagnóstico é frequente nos parassuicidas recorrentes a seguinte comorbilidade:
  • Depressão ou perturbação de adaptação (reacção de ajustamento)
  • Perturbação da personalidade (“cluster” B>C>A), borderline, histriónica, dependente…
  • Consumo de substâncias psico-activas (álcool, drogas)
  • Perturbação do controlo do impulso (impulsivos-explosivos)
Entre os aspectos mais chocantes das entrevistas contam-se as referências a maus tratos (físicos, psicológicos, sexuais) e histórias de vida interpretadas como de rejeição continuada ao longo dos anos. Afinal, pessoas que, dizem, nunca se sentiram verdadeiramente amadas. Foi isso que nos permitiu propor o conceito de “rejeição sentencial familiar”, como uma marca indelevel que emergeria ocasionalmente perante circunstâncias adversas ou ameaçadoras (Saraiva, 1997; 1999; 2006). Tais achados também nos reacenderiam o pensamento crítico e o compromisso para com a cidadania. De facto, perante tantos jovens-problema que convivem com tantas famílias-problema, há uma pergunta obrigatória: “O que estamos a fazer pelas crianças do nosso país?”.
Do nosso trabalho empírico clínico resultante da observação de milhares de casos com estas patologias, desde a década de 80, consideramos que o parassuicídio decorre da conjunção stress-vulnerabilidades (neurobiológicas, neurofisiológicas, psicológicas, culturais) onde a reemergência de memórias traumáticas de infância ou adolescência ocupa papel de relevo. Depende ainda da personalidade e sua estrutura cognitiva, de múltiplos factores do meio ambiente, quer protectores quer de risco. O parassuicídio é um comportamento-doença subjacente a uma patologia dos afectos, ajustamentos, personalidade, interacção social e familiar (Saraiva, 1997; 1999; 2006).
A Consulta de Prevenção do Suicídio tem uma dupla vertente: assistencial e investigação. Membros actuais: Carlos Braz Saraiva, Francisco Alte da Veiga, Adelaide Craveiro, José Carlos Santos, Nuno Madeira, Paula Garrido. Milhares de consultas, diversos trabalhos de investigação1, um prémio num congresso mundial de suicidologia2 da IASP, na Índia, em 2001, organização das “Jornadas sobre Comportamentos Suicidários” (8ª Edição em 2010), oficinas de formação, colaborações em obras de suicidologia, em “sites”, na comunicação social, palestras em escolas, participação activa na Sociedade Portuguesa de Suicidologia, etc. atestam a vitalidade do grupo.
__________________________________
1 Últimos trabalhos de investigação internacionais do grupo apresentados no 13º Congresso Europeu da IASP, Roma (2010): Childhood traumas and clinical vulnerabilities among young parasuicides repeaters; Lack of religious practice among young parasuicides in Portugal; Rituals and anniversary reactions among young parasuicides in Portugal; Smoking and suicidal behaviour: a study on 448 young suicide attempters in Portugal.
2 Suicidal behavior in schizophrenics: A retrospective study.

8. Subsídios para um plano de prevenção do suicídio em Portugal

É consensual em todo o mundo científico que o suicídio é um fenómeno complexo e multideterminado. Por isso, um Plano Nacional de Prevenção do Suicídio deveria englobar um conjunto de medidas onde interviessem diversos protagonistas. Os papéis da sociedade civil, por exemplo através do voluntariado em Centros SOS, ainda que com apoios técnicos específicos, e o papel da religião, pelo apoio espiritual, seriam também essenciais. Naturalmente que qualquer plano de prevenção do suicídio terá sempre como fontes inspiradoras o trabalho desenvolvido há longos anos por outros países, principalmente aqueles com maiores afinidades culturais. As suas experiências, os seus anseios, os seus fracassos. Uma proposta de intervenção possível consistiria em quatro níveis (Saraiva, 2006, p.241):
  • Comunidade;
  • Saúde;
  • Escola;
  • Política Social.
A nível da comunidade seria determinante uma regulação sobre a comunicação social em relação ao “como dar as notícias de suicídio”, de modo a não potenciar o fenómeno da imitação. A Organização Mundial de Saúde fornece mesmo algumas recomendações específicas nesse sentido (V. texto completo em www.spsuicidologia.pt) mas o que é muito frequente no nosso país é a exploração pelo lado sensacionalista dos casos de suicídio em vez da menção aos mecanismos de ajuda, psicológica, psiquiátrica ou social para um qualquer indivíduo desesperançado ou desesperado. E, por incrível que pareça, lá surgem as notícias de primeira página nos jornais e nas revistas, com fotos explícitas, enquanto as TVs também não se coíbem de falar do assunto com imagens inadequadas em termos de prevenção do suicídio. Os casos recentes, em 2010, do guarda-redes alemão Enke e de Leandro, o rapaz da escola de Mirandela, são dois bons exemplos do que não deve ser feito. Outras situações, como os suicídios da cantora Cândida Branca-Flor e do jornalista Miguel Ganhão Pereira revelaram a mesma insensatez da parte de alguns órgãos da comunicação social.
Um outro aspecto relevante seria a existência de uma legislação mais rígida sobre aquisição e armazenamento de pesticidas, que fosse efectivamente cumprida pelas inspecções regulares. Com avultadas coimas para os infractores. De facto, o suicídio por pesticidas em Portugal denota ainda um padrão terceiro-mundista, como acontece na Índia ou no Sri Lanka. É chocante saber-se que os pesticidas estão frequentemente “à mão de semear”, por vezes em dispensas próximas de alimentos, sem tempo para esbater quaisquer impulsos mais autodestrutivos. É necessária uma informação detalhada sobre estes perigos, pedagógica, principalmente sobre o potencial de letalidade de muitos destes tóxicos. Uma das vivências que mais amargura dá a um clínico é saber que certos intoxicados vão morrer por fibrose pulmonar, por exemplo, ao fim de alguns dias, apesar do arrependimento pelo seu acto.
Também a restrição ao uso e porte de arma de fogo deveria ser muito mais rigorosa. Através de um rastreio cuidado, de testes médicos e psicológicos exigentes, por exemplo para descartar alcoolismo, bipolaridade, consumo de drogas, doenças da personalidade, debilidades mentais ou mesmo psicoses. Isto é válido também para a passagem da carta de caçador. É surpreendente o número de armas legais e ilegais, por suposição, que existirão em Portugal, ainda por cima num país que tem quase um milhão de alcoólicos, muitos deles depressivos. E todos sabemos desta perigosa associação entre arma de fogo, depressão e álcool. Mas ainda que seja de justiça referir que se nota actualmente uma maior mobilização para o cumprimento desses desígnios jamais se poderá esmorecer no exercício de uma política de exigência em relação às armas. Principalmente num país latino, como Portugal, muito arreigado ao estilo “deixa andar”, “depois logo se vê”. Ainda a respeito das armas convirá referir a preocupação governamental em implementar um plano de prevenção do suicídio nas forças de segurança, principalmente depois da ocorrência de diversos suicídios na PSP e na GNR com a arma de serviço, já no Século XXI, de grande impacto mediático. Nós próprios e os colegas psiquiatras Bessa Peixoto e Nazaré Santos, entregámos em 2006 um relatório no Ministério da Administração Interna com sugestões específicas para uma melhor prevenção.
Um outro problema também acabaria por ganhar dimensão mediática: os suicídios em meio prisional. O facto de todos meses se suicidar, pelo menos, um preso nas cadeias portuguesas tem justificado debates e recomendações de modo a lidar melhor com essa preocupante realidade. O ano de 2004, com 22 suicídios, foi um dos anos mais trágicos (Moreira, 2008; 2010).
Noutra perspectiva, deveria haver restrições ao acesso a sítios altos através de barreiras ou redes de modo a diminuir a probabilidade de suicídio por precipitação. Casos de pontes ou falésias sobre o mar. Um bom exemplo de prevenção é a principal escadaria dos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde espias de aço impedem que alguém se precipite. Uma medida acertada. Nesses locais de “culto suicida”, como há vários em Portugal, poderiam ser colocados cartazes com “frases específicas” e “imagens adequadas” a quem está a sofrer de ambivalência suicida (por exemplo, uma mãe com uma criança ao colo; uma criança a passear o seu cachorro, etc.) e informação de contactos telefónicos SOS para que alguém pudesse entabular conversação no momento.
É precisamente a partir deste propósito, e também pelo facto de termos sido um dos fundadores e o primeiro Director do Telefone SOS-Telefone Amigo de Coimbra (1986-1995), que consideramos altamente meritória a existência de Centros SOS para a prevenção do suicídio em Portugal. Os Centros mais antigos são o SOS Voz Amiga, de Lisboa, (Tels. 21 354 45 45; 91 280 26 69; 96 352 46 60), fundado em 1978, onde se destacaram os psiquiatras Fragoso Mendes, Luís Pratz e Marco Paulino, e o Telefone da Amizade, do Porto, (Tel. 22 832 35 35), criado em 1982, onde se evidenciou o psiquiatra José Carlos Pacheco. Ulteriormente seriam fundados mais Centros SOS, como o de Coimbra (1986), já referido, Viseu (1994), infelizmente ambos entretanto encerrados, SOS Estudante, em 1997, (Coimbra, tels. 808 200 204; 96 955 45 45), Escutar, Voz de Apoio, em 2000, (Gaia, tel. 22 550 60 70). Chegados aqui, uma palavra é devida ao padre anglicano Chad Varah (1911-2007), fundador dos samaritanos ingleses em 1953, modelo inspirador de muitos centros SOS mundiais, personalidade inesquecível, marcante pelo seu carisma e humanismo, que tivemos o grato prazer de conhecer pessoalmente em Londres, em 1992, na sua igreja de St. Stephen Walbrook3.
__________________________________
3 Fomos recebidos com grande cordialidade. Chad Varah já conhecia Portugal e mostrou curiosidade em saber notícias de alguns voluntários do Telefone da Amizade do Porto. Visitámos a zona onde “tudo” começou. Tirámos fotografias. Depois assistimos a uma missa anglicana rezada por ele. Com um coro notável. E no meio da igreja o famoso altar de Henry Moore…
Embora a eficácia dos Centros SOS seja controversa em relação à diminuição das taxas de suicídio, parece inequívoca a sua acção positiva na luta contra a solidão, angústia e desespero. Ou seja, o sofrimento a montante. Nessa relação de ajuda, quantas vezes em fase de ambivalência suicida, encontramos algumas possibilidades interessantes que alguém chamou de amigoterapia, senão mesmo de psicoterapia: Empatia, verbalização de emoções, reforço da auto-estima, resolução de problemas, modificação de pensamentos e atitudes radicais, desdramatização e relativização, pensamento reorientado para o futuro, flexibilização da rigidez, luta contra a desesperança (Saraiva, 2006, p. 237).
Os designados “sobreviventes”, ou seja, familiares e amigos de um suicida, em dolorosos processos de luto, poderão justificar medidas de apoio não só da parte de profissionais mas também dos Centros SOS ou outras organizações como “A Nossa Âncora”, uma associação de pais em luto que fornece acolhimento, escuta e conforto (Tels. 21 910 57 55; 93 347 40 50).
Ainda no nível das intervenções da parte da comunidade há a questão preocupante da “internet”. Não querendo diabolizar as novas tecnologias há que contrariar ou mesmo proibir os “sites” pró-suicídio. Surpreendentemente estes são mais do que os que falam de prevenção. Por isso, é imprescindível promover as razões para viver e as estratégias mais adequadas para lidar com os chamados pensamentos automáticos negativos. Como esbater angústias, perdas, sofrimentos. Como lidar com a frustração. Como inverter a desesperança. Quais os mecanismos de apoio. Trata-se de uma ambição de cariz mundial só possível pela articulação de forças poderosas globalizadas, desde a Organização Mundial de Saúde aos governos, passando pela regulação dos grandes servidores da “net”, pelas escolas, pela comunicação social, etc.
A nível da saúde surge como prioritária a identificação de grupos de alto risco e dos chamados síndromes pré-suicidas. Não podemos ignorar que os clínicos gerais são “os psiquiatras de primeira linha”. Porém, à partida são reconhecidas algumas insuficiências dos médicos de família na detecção precoce dos quadros depressivos. Daí decorre o imperativo de uma melhor formação, designadamente na área das perturbações do humor. Como diagnosticar, como tratar. É precisamente com este objectivo que a Sociedade Portuguesa de Suicidologia, através de simpósios, cursos, “site” informativo, publicação de um livro, tem tido essa preocupação de melhorar no terreno o conhecimento destas temáticas. Outras instituições estão também a executar trabalhos na área da suicidologia, como a Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa, envolvida na Aliança Europeia contra a Depressão, a Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, a Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Domínio de Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, a Escola Superior de Saúde de Viseu, etc. É de inteira justiça referir ainda as acções de formação que muitos psiquiatras, a título individual, ou outros técnicos de saúde mental, têm levado a cabo, por exemplo, em Centros de Saúde. Outras psicopatologias relevantes a considerar para o despiste do alto risco suicida: esquizofrenia, alcoolismo, substâncias psico-activas (drogas), perturbações da personalidade, distúrbio pós stress traumático. No caso da esquizofrenia o risco de suicídio é maior nos primeiros anos da doença, principalmente pela presença de sintomas positivos, isto é, delírios e alucinações auditivas, algumas imperativas de auto-aniquilação. Para além da necessidade de uma medicação antipsicótica correcta importa confirmar a adesão ao tratamento, onde o factor preço é determinante, pelo que são necessárias medidas para um apoio mais solidário. Os aspectos familiares, psicossociais, como os da reabilitação psiquiátrica, também não podem ser descurados. Isso favorece a terapêutica, melhora o prognóstico e responde ao compromisso de solidariedade devido a este tipo de doentes. Obviamente para estes desígnios são necessários recursos financeiros, que cremos ser de inteira justiça a sua disponibilização. Em relação ao mundo do álcool e das drogas exige-se um trabalho hercúleo, específico, uma guerra com muitas frentes de combate, cujas armas não poderão ser apenas as do arsenal da psiquiatria. Ancora em aspectos culturais e sociológicos que carecem de intervenções sociais robustas e consistentes ao longo do tempo. Aqui se esperam profissionais dedicados, quase imbuídos por um espírito de missão, para além do brio e do empenhamento necessários, inseridos numa correcta política de saúde mental. As patologias da personalidade, ainda que sendo uma área nebulosa dentro da psiquiatria, não só pelo “caleidoscópico sintomatológico” mas também pelas oscilações da própria nomenclatura, são de difícil interpretação e manejo. Todavia, a actual diferenciação didáctica das principais tipologias (“clusters” A, B e C), apesar de algumas polémicas conceptuais que poderão ser mitigadas no DSM-V, ajuda à compreensão de certos excessos ou defeitos de determinadas idiossincrasias individuais. Para além de sugestões específicas para a mudança do estilo de vida, é quase sempre possível encontrar um modelo psicoterapêutico individual ou de grupo, ou mesmo desportivo ou de intervenção cívica, entre outros, que poderão beneficiar as esferas familiares, afectivas ou laborais. Existem também psicofármacos com acção sobre alguns aspectos das perturbações da personalidade, como a impulsividade, irritabilidade, sensitividade e agressividade.
A nível da Escola convocam-se todos os protagonistas, todos os agentes escolares. Sabemos que a Escola fornece instrução e conhecimento. Mas também deverá ser local de educação cívica e de formação. De socialização, de divertimento, de prática desportiva. Onde se deve aprender a ganhar e a perder. Um espaço de conforto e de satisfação pelo sentimento de pertença, essencial ao espírito de corpo. Todos os verdadeiros professores reconhecem os seus alunos mais problemáticos. Aqueles onde emergem sinais de que algo não está bem na escola ou em casa. Saúde, nutrição, família, traumas… “Afinal, o que se passará?”. É uma pergunta comum. Todas as escolas deveriam ter vários psicólogos escolares também de competências clínicas com treino de aptidões específicas para lidar com jovens com problemas de sexualidade, na “crise do aborrecimento” ou mesmo deprimidos, para além de casos de droga e alcoolismo. Uma formação em suicidologia seria uma mais-valia. E, neste ponto, a Sociedade Portuguesa de Suicidologia só poderá ter uma resposta: presente! Mas nós não precisaríamos de partir do zero. Países como os EUA, Canadá, Holanda, Suécia, têm programas de prevenção do suicídio nas escolas. A ligação a uma unidade psiquiátrica de referência, preparada para tais situações juvenis, deveria ser imediata e liberta de quaisquer teias burocráticas. E nunca é demais alertar: seria desejável que a Escola não só despertasse para a realidade das condutas suicidas juvenis quando ocorre um acontecimento trágico entre os seus alunos. É, portanto, imperativa mais e melhor prevenção.
A nível da política social, compete ao poder político minorar alguns dos factores de risco do suicídio, principalmente os que se prendem com o desemprego, isolamento, exclusão social, pobreza, solidão, falta de apoios médico-sociais. No caso particular dos idosos do Alentejo é necessário combater o isolamento estimulando o sentido gregário e associativo, por exemplo aproveitando os edifícios escolares, juntas de freguesia, clubes, lares de terceira idade, igrejas, com projectos de actividades colectivas, onde os animadores socioculturais podem ter um papel profícuo. Tudo isto naturalmente com apoio médico facilitado e não intermitente. Foi precisamente com este espírito sistémico, para a prevenção do suicídio, que em 1998 foi organizado um congresso em Odemira (Pousada da Santa Clara-a-Velha) envolvendo o delegado de saúde local, peritos em suicidologia e saúde pública, autarcas, GNR, segurança social, pároco, etc. Estivemos presentes, tal como Daniel Sampaio, Nazaré Santos, Fernando Areal, Francisco George, Expedito Ribeiro, entre outros, e percebemos que o objectivo era genuíno: encontrar uma estratégia global de prevenção do suicídio no Alentejo. Portanto, há muito que o diagnóstico é conhecido. Agora já só falta fazer “alguma coisa”.
Ainda a nível da política social, uma outra vertente é o problema do homem adulto que permanece numa situação de desemprego, sem proventos para a subsistência, por vezes com família a seu cargo, eventualmente doente, com perda de estatuto social, e que pode enveredar por um sentimento de desesperança em que a ideação suicida surge na sua mente. Revolta, desespero, renúncia, desistência, são exemplos de palavras que ouvimos frequentemente como técnicos de saúde mental. Um outro aspecto fundamental no nosso país é a questão dos idosos solitários das grandes cidades ou de bairros suburbanos. Muitas vezes sem família por perto, abandonados, na miséria, em casas degradadas, frias no Inverno, mal nutridos, comendo sopa, pão e pouco mais. Bebem café para “acordar” e às vezes bebidas alcoólicas em excesso para “esquecer” ou “dormir”. Também o problema dos idosos vítimas de violência doméstica começou a deixar de ser tabu pela recente visibilidade mediática. É, ao fim e ao cabo, mais uma frente onde é necessário intervir preventivamente. Em remate, o que importa reter é que a solidariedade para com estas pessoas tem que estar muito para além da mera caridade e representar uma postura de amparo social de acordo com a dignidade que é devida a muitos concidadãos que durante dezenas de anos contribuíram para o desenvolvimento do seu país e para o bem-estar de outras gerações. Trata-se de uma conquista civilizacional do Ocidente à qual nenhum Estado pode ficar indiferente. A menos que se queira adornar de tal vitupério!

9. A Sociedade Portuguesa de Suicidologia

A Sociedade Portuguesa de Suicidologia começou a germinar em 1996 na sequência das “1as Jornadas sobre Comportamentos Suicidários” (Pousada de Santa Cristina, Condeixa-a-Nova), organizadas pela Consulta de Prevenção do Suicídio dos Hospitais da Universidade de Coimbra. A existência de alguns grupos que já estavam inseridos nesta temática (Lisboa, Coimbra, Portalegre, Braga, Beja, Faro, etc.) facilitou os contactos iniciais. Nem todos eram do mundo da Psiquiatria. Uns oriundos da Saúde Pública, outros da Medicina Legal, outros da Psicologia. Outros ainda de áreas afins. Após diversas reuniões preparatórias dos estatutos e dos projectos a desenvolver, foi registada no cartório notarial de Poiares, a Sociedade Portuguesa de Suicidologia, a 16 de Dezembro de 2000, composta por 54 sócios fundadores, cujas proveniências eram as mais diversas. Desde médicos a enfermeiros. Desde técnicos de serviço social a psicólogos. Desde professores a sociólogos. Tivemos a subida honra de assumir o cargo de Presidente da Direcção, até 2005. Ulteriormente seriam eleitos para este cargo Bessa Peixoto (2005-2007), director do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de S. Marcos, em Braga, e fundador da Unidade de Comportamentos Suicidários, e Nazaré Santos (2007-2011), psiquiatra do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e membro do Núcleo de Estudos do Suicídio. Os Presidentes da Assembleia Geral foram, até ao presente, Daniel Sampaio, professor catedrático de psiquiatria da Faculdade de Medicina de Lisboa e fundador do Núcleo de Estudos do Suicídio, Fernando Areal, psiquiatra de Beja, Jorge Costa Santos, director do Instituto de Medicina Legal de Lisboa e professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, Bessa Peixoto, Érico da Silveira, psiquiatra de Portalegre e fundador da Unidade de Prevenção do Suicídio, e Daniel Seabra, psiquiatra de Faro e presidente das Jornadas de Saúde Mental do Algarve (14ª Edição em 2010).
A Sociedade Portuguesa de Suicidologia viu crescer rapidamente o seu número de associados, ultrapassando actualmente as duas centenas. De entre as suas iniciativas tem tido grande impacto a de co-organizar regularmente simpósios em diversas regiões do país (Lisboa, Condeixa-a-Nova, Beja, Viseu, Portalegre, Covilhã, Carvoeiro, Braga) de modo a mobilizar recursos médicos e sociais bem como alertar consciências para a realidade das condutas suicidas. Usualmente de inspirações temáticas, os simpósios já debateram assuntos tão diversos como “Suicídio e Comunicação Social”, “Modelos de Intervenção”, “Solidão e Melancolia”, “A Escola e os Comportamentos de Risco”, “A Depressão no Idoso”, “Violência, Trauma e Comportamentos Suicidários”, “Suicídio – Questões Actuais”. O próximo simpósio irá realizar-se na cidade da Guarda a 8 e 9 de Abril de 2011, subordinado ao tema “Conhecer para Prevenir”.
Em 2003 foi criado o “site” www.spsuicidologia.pt, com natural destaque para os aspectos informativos gerais e da prevenção do suicídio. Apresenta ainda diversos artigos científicos, entrevistas, dados estatísticos, respostas a questões frequentes, etc. O elevado número de visitantes4 confirmaria o seu interesse científico e social.
Em 2004, a Sociedade Portuguesa de Suicidologia organizou em Coimbra o I Curso de Formação em Suicidologia, tendo concluído 24 formandos. Ainda neste mesmo ano, numa parceria com a Consulta de Prevenção do Suicídio, realizaram-se as “5as Jornadas sobre Comportamentos Suicidários”, no Luso, com o número impressionante de 820 congressistas!
Em 2006, a Sociedade Portuguesa de Suicidologia publicou a obra “Comportamentos Suicidários em Portugal”, prefaciada por Adriano Vaz Serra, em 23 capítulos (480 pp.) com o contributo de 27 autores de diferentes disciplinas, todos membros da Sociedade Portuguesa de Suicidologia (Abílio Oliveira, Álvaro de Carvalho, Ana Carvalhal de Melo, Bessa Peixoto, Carlos Braz Saraiva, Daniel Sampaio, Daniel Seabra, Ema Lima das Neves, Fidalgo de Freitas, Francisco Alte da Veiga, Jorge Costa Santos, José Barrias, José Carlos Santos, José Morgado Pereira, Luís Louzã Henriques, Manuel João Quartilho, Maria da Natividade Henriques, Mário Jorge Santos, Nazaré Santos, Neuza Pinto de Almeida, Nuno Pessoa Gil, Olga Ordaz, Orlando Guete Tur, Paulo Soeiro, Pedro Frazão, Sónia Azenha, Zulmira Santos). Os coordenadores de edição foram Bessa Peixoto, Carlos Braz Saraiva e Daniel Sampaio. O livro, que preencheria uma lacuna científica no nosso país, abarca os grandes temas da suicidologia, desde os aspectos conceptuais, históricos, filosóficos e culturais até ao tratamento da ideação suicida, passando pela epidemiologia, metodologias de investigação, factores de risco, modelos, famílias, ciclo de vida, prática clínica, autópsias psicológicas e prevenção. A construção da obra obedece a uma lógica sequencial de modo a tornar a leitura mais acessível e estimulante ao mesmo tempo que fornece um enriquecimento progressivo dos conhecimentos.
Ainda em 2006, nós próprios, Bessa Peixoto e Nazaré Santos, com a prestimosa colaboração de psicólogos da PSP e da GNR, bem como psiquiatras desta última instituição, fomos convidados pelo Ministério da Administração Interna a elaborar um plano de prevenção do suicídio nas Forças de Segurança. Tratou-se de um trabalho minucioso que partiu do estudo de casos de suicídio ocorridos em agentes da PSP e em soldados da GNR através de metodologias de autópsia psicológica (inspiradas em Shneidman, mas adaptadas a Portugal, numa colaboração estreita com Jorge Costa Santos a partir do seu trabalho, 1998), que muito honrou a Sociedade Portuguesa de Suicidologia.
No fecho do primeiro decénio do Século XXI, a revitalização da Sociedade Portuguesa de Suicidologia está à vista não só pelo estímulo à criação de novas consultas de prevenção do suicídio mas também pelos jovens académicos, seus associados, que entretanto despontaram nestes últimos anos através de doutoramentos já efectuados ou em preparação. Correndo o risco de não sermos exaustivos: José Carlos Santos (Coimbra), na área da emoção expressa em famílias de para-suicidas, Nuno Costa Moreira (Braga), na área das condutas suicidas em meio prisional, Marta Brás (Faro), na área da prevenção do suicídio em meio escolar, Inês Rothes (Porto), na área das representações sociais do suicídio, Diana Cruz (Lisboa), na área da dinâmica familiar em adolescentes com comportamentos autodestrutivos, Diogo Frasquilho Guerreiro (Lisboa), na área da prevalência dos comportamentos autolesivos dos jovens em meio escolar.
__________________________________
4 Chegou a ter 150 visitantes por dia.

10. A homenagem a Edwin Shneidman

Edwin Shneidman (1918-2009) nasceu em York e morreu em Los Angeles. Psicólogo de formação, viria a ser um eminente investigador na área do suicídio e da tanatologia. Para muitos, é tido como o pai da suicidologia. Foi um dos pioneiros do Centro de Prevenção do Suicídio de Los Angeles e da Associação Americana de Suicidologia. Professor na Universidade da Califórnia, ajudaria a fundar a revista “Suicide and Life-Threatening Behavior”. Autor de vasta obra, destacam-se: “The definition of suicide” (1985), “Suicide as psychache” (1993), “The suicidal mind” (1996).
Shneidman, inicialmente inspirado nas teorias da personalidade de Henry Murray, o investigador das necessidades psicológicas básicas do ser humano, consideraria o suicídio como o resultado final da confluência de um máximo de dor, um máximo de perturbação e um máximo de pressão. Trata-se de um engenhoso modelo cúbico, também conhecido pelo “cubo suicida de Shneidman” (1987). Imagine-se um cubo grande composto de 125 pequenos cubos (5x5x5), onde um “cursor” pode aumentar ou diminuir a força das variáveis dor, perturbação e pressão. A dor é a designada dor psicológica: frustração pela falta das necessidades básicas psicológicas, o componente central do suicídio. A perturbação refere-se a um qualquer distúrbio: como distorções cognitivas, auto-mutilações. A pressão está relacionada com “tudo o que está fora” e “tudo o que está dentro do indivíduo”: acontecimentos de vida, vivências.
Shneidman (1985) valoriza a intencionalidade do suicida segundo três aspectos:
  1. Morte intencional, onde o indivíduo teve um protagonismo consciente, exemplificada no enforcamento;
  2. Morte não intencional, onde o indivíduo não foi protagonista para tal desfecho, exemplificada na morte a limpar uma arma de fogo;
  3. Morte subintencional, onde o indivíduo teve um protagonismo indirecto ou inconsciente, exemplificada no acidente de automóvel a alta velocidade.
Estas subtilezas de apreciação seriam mais adequadas face à complexidade de certas mortes, da clássica divisão em naturais, acidentes, suicídios e homicídios, a conhecida sigla NASH (por vezes surge na literatura a sigla NASHI, sendo o I a referência a morte indeterminada).
A ambivalência, como um dos aspectos mais intrigantes da mente do suicida, mereceria também a sua investigação. Refere, por exemplo, que o homem que corta o pescoço ao mesmo tempo que grita por socorro é o protótipo do suicida que é genuíno em ambos os comportamentos. A ambivalência fará, aliás, parte das suas conhecidas “commonalities”, as 10 características mais comuns aos suicidas (Shneidman, 1985):
  1. Propósito – procura de solução
  2. Objectivo – parar a consciência
  3. Estímulo – dor psicológica intolerável
  4. Stresse – frustração pela falta das necessidades psicológicas
  5. Emoção – desespero-desesperança
  6. Estado cognitivo – ambivalência
  7. Estado perceptivo – constrição
  8. Acção – fuga
  9. Acto interpessoal – comunicação de intenção
  10. Consistência – de acordo com estratégias de “coping” maladaptativas do passado
Num ensaio de um cenário suicida explicativo, Shneidman (1985) refere ser fundamental a combinação destes elementos para haver um suicídio:
  1. Sentimento de dor intolerável – directamente relacionada com a frustração pelas necessidades psicológicas básicas não terem sido satisfeitas.
  2. Atitude de se auto-desvalorizar (auto-denegrir) – auto-imagem que não consegue aguentar a dor psicológica intensa.
  3. Constrição marcada da mente e um prejuízo das tarefas do dia-a-dia.
  4. Sensação de isolamento – um sentimento de deserção e perda de suporte de pessoas significativas.
  5. Intenso e desesperado sentimento de desesperança – a sensação de que já nada pode ser feito.
  6. Decisão consciente de fuga – abandono, desaparecimento ou interrupção (cessação ou paragem) da vida – como a única (ou pelo menos a melhor possível) solução para resolver o problema da dor intolerável.
Algum tempo depois, Shneidman (1987) escreveria mesmo: “ No Ocidente, o suicídio é um acto consciente de auto-aniquilação, melhor compreendido como uma doença multidimensional num indivíduo carente que acredita ser o suicídio a melhor solução para resolver um problema”. Em 1996 referir-se-ia também ao que estava muito para além dos marcadores biológicos, ao fracasso da sociedade. Ou já em 2001: “ O suicídio é um drama da mente…quase sempre relacionado com a dor psicológica, a dor das emoções negativas – a chamada psychache”.
Shneidman ficará também ligado à metodologia das chamadas autópsias psicológicas, termo aplicado pelo cientista em 1958. O objectivo era o esclarecimento das mortes equívocas após a realização da autópsia médico-legal. Confrontados com o problema da intenção de matar, os médico-legistas acabariam por ir ao local da morte, ouvir a polícia, médicos assistentes, familiares, etc. A colaboração com a Psiquiatria e a Saúde Mental surgiria com naturalidade. Até porque haveria que responder a algumas perguntas (Shneidman, 1969):
  • “ Qual o tipo de morte mais provável?”
  • “ Porquê o suicídio?”
  • “ Como morreu e porquê naquele momento?”
  • “ Será que a família precisa de apoio?”.
Exportada de Los Angeles para o mundo tal metodologia de investigação, foi, então, que se concluiria, em países e culturas diferentes, em estudos que envolveram milhares de suicidas, a existência de patologia psiquiátrica em cerca de 90% dos casos e depressão em mais de 50% das vítimas (Saraiva, 2006, p. 159).
A formulação de Shneidman daquela última pergunta (“Será que a família precisa de apoio?”) logo à cabeça vinda de um tanatologista denota uma sensibilidade para com os vivos, uma preocupação sobre aqueles que viriam a ser chamados mais tarde de “sobreviventes”, tema de particular atenção nos dias de hoje. De facto, Shneidman (1973) designaria por “pósvenção” a intervenção específica sobre os familiares e amigos do suicida. O principal objectivo seria ajudar à resolução do processo de luto, incluindo o desencorajamento de eventuais ideias ou tendências suicidas. Um cientista clarividente, um cidadão com preocupações sociais… Antes do final do primeiro decénio do Século XXI, um ano depois da sua morte, achámos por bem escrever este texto. Uma simples homenagem que lhe era muito justamente devida.
Uncategorized