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Foi há quase 10 anos que o suicídio colectivo de 53 fiéis da seita da Ordem do Templo, na Suíça e no Canadá, ocorrido em Outubro de 1994, fez retomar a discussão do fanatismo religioso. A proliferação de seitas no final do século XX, imbuídas de uma certa discrição ou mesmo secretismo, parece atraír um determinado tipo de pessoas, certamente inquietas ou desesperadas, que deixaram de encontrar na Igreja tradicional o ancoradouro para as suas almas à deriva. O distanciamento, a desritualização, a tolerância e a permissividade excessivas após o Concílio Vaticano II – realizado na década de 60 durante o papado de João XXIII – contrastam seriamente com o rigor da disciplina dos ritos das novas religiões. Estas seitas redescobriram o ovo de Colombo, isto é, a necessidade elementar do ambiente festivo nas celebrações e do contacto físico, na verdade uma forma de comunicação mais calorosa e profícua que a verbal. Numa época em que toda a gente fala de carências afectivas, um simples afago, um abraço pode fazer a maravilha.
A sociedade contemporânea é caracterizada por um furor competitivo que tem estimulado ao extremo uma dicotomia social e religiosa: De um lado os bons, os puros, do outro os maus, os ímpios. Para justificar o aniquilar dos outros, facilmente desponta uma qualquer teoria que fabricará os comportamentos necessários a uma purificação divina. De facto, qualquer seita religiosa contém quatro ingredientes essenciais: uma mensagem, um inimigo, uma emoção e a existência de um líder.
A mensagem significa que existe um ideal no horizonte, um projecto tido como sublime, por vezes mesmo revestido de utopia, com uma meta a alcançar, permanentemente alimentado por palavras mágicas, de grande força sonora e carga simbólica, em autênticas lavagens ao cérebro, através de pregações, cânticos ou rezas.
A invenção de um inimigo hediondo aumenta a unidade do grupo e reforça o fanatismo, tornando as convicções mais inabaláveis, impossíveis de contrariar por uma qualquer lógica de argumentação de ideias, até porque fé e crenças não se discutem. Assim, toda a raiva acaba por ser canalizada para fora, como uma bateria de canhões apontada para o mesmo alvo.
A emoção advém da esperança, do grito, do choro, da música a marinar o ambiente propício à transformação para um qualquer milagre avulso, depois dos ataques nervosos e dos transes espectaculares, logo achados como coisas do outro mundo ou fenómenos paranormais.
O líder é naturalmente o guia espiritual incontestado, o Mestre, o Sacerdote, o Guru, aquele que é reconhecido como o detentor da Luz da Vida, da perfeição, da verdade absoluta, como se fora Deus.
Os ritos, os paramentos, os sacrificíos, as penitências, as oferendas, os defumadoiros, os hinos, são outros tantos condimentos necessários à construção de uma seita religiosa. E se o acesso for condicionado por algumas barreiras maior será a atracção pelo excêntrico ou pelo fantástico. É precisamente por isto que indivíduos de inclinação mística, influenciáveis, revoltados ou com o germen de uma certa dose de loucura, podem ser ingenuamente explorados por pastores religiosos sem escrúpulos, muitos deles vivendo no luxo de um parasitismo aviltante. A psicologia das multidões ensina-nos que a manipulação de massas pode ser uma arma tão perversa quanto terrível. Por exemplo, a sugestão e a hipnose em grupo originam frequentemente uma epidemia de crises dissociativas dentro do clímax das sessões religiosas, esses ataques nervosos de todos os ais e suspiros. Os fazedores de milagres a pataco terão tanto mais êxito quanto maior a ignorância e a crendice. Mais uma vez na História, os simples, os pobres e os desprotegidos são as presas mais apetecíveis para os novos vendilhões do templo, que prometendo o que não podem dar – ou seja os bens celestes – se banqueteiam com os bens terrestres, espoliados que foram os inocentes da forma mais vil.
Em 1995, Shoko Asahara, o guia espiritual da seita religiosa Aum Verdade Suprema, foi acusado do atentado com gás sarin no Metro de Tóquio, no qual morreram 11 pessoas e 6 mil ficaram feridas. Preso dois meses depois, tal facto não deixa de ser excepcional num pastor religioso. A perseguição foi encetada pela polícia japonesa com grande aparato para mostrar a força do Estado. Se a tentativa de desmembramento da seita pareceu determinada, esta só foi activada após a consciencialização de que a pretensa loucura do guia espiritual já extravasava a mera influência de umas centenas de fiéis e se reclamava de projectos potencialmente nefastos para o poder instituído.
Do ponto de vista da psiquiatria, grande parte dos gurus destas seitas religiosas são doentes mentais afectados por perturbações da personalidade – as chamadas psicopatias – ou perturbações do pensamento, de que é exemplo mais comum a paranóia. O guru doente pode mesmo vir a deteriorar-se com o decorrer dos anos, o que conduz a um vincar de hostilidades e de radicalismos, pelo acentuar dos traços da personalidade. Às vezes acaba por assumir-se como a reencarnação do próprio Cristo ou outra divindade.
A história de Jim Jones – o pregador da Califórnia do amor e do socialismo – é simultaneamente triste e paradigmática da relação entre seita religiosa e suicídio colectivo. Este homem, na casa dos 40, iniciou o acolhimento de oprimidos e marginalizados, em troca de donativos que ajudaram a consolidar a sua Obra, logo auto-denominada de Igreja, o Templo dos Povos. Rapidamente se formou um séquito de fanáticos e o pastor acabaria por fundar a cidade de Jones – Jonestown – na Guiana, em 1977, à “boa maneira” do culto da personalidade. Aqui proclamou o Reino Religioso da Utopia, à procura de uma terra do leite e do mel.
Os crentes eram acordados a meio da noite para admirarem os seus discursos e quaisquer resistências acabavam num espancamento, dito justiceiro. A fidelidade não se discutia. As crianças mais irrequietas eram metidas dentro de um poço que acreditavam estar cheio de serpentes. Também deveriam sorrir sempre que ouvissem o nome do Mestre, a menos que quisessem experimentar um castigo de choques eléctricos nos braços ou nas pernas.
Uma vez, num simulacro de suicídio colectivo, Jim Jones quis testar a lealdade incondicional dos seus seguidores. Para o efeito, incitou todos os membros da seita a beber um veneno num ritual que perpetuaria os mártires do socialismo. Todos beberam e só posteriormente se confirmou que a bebida era inofensiva.
Entretanto, de Jonestown chegavam à América notícias dos desvarios do iluminado que incluíam orgias sexuais com crianças. O congressista pela Califórnia Leo Ryan, respondendo às solicitações dos eleitores, disponibilizou-se para ir à Guiana. Aqui, após verificar o desejo de alguns dissidentes em regressar aos EUA, seria abatido a tiro numa emboscada juntamente com dois jornalistas e um membro da seita.
À mesma hora o pastor reuniu o rebanho para o último sermão. Falou dos inimigos e da batalha iminente, mas decidido a não se render exigiu que todos ingerissem um refresco de cianeto. E assim morreram, por um louco e sem glória, cerca de 900 pessoas sôfregas de alguma coisa. Mais tarde, os sobreviventes contaram que as mães metiam o veneno na boca das crianças enquanto as famílias esperavam serenamente pelo desenlace. Jim Jones suicidou-se com um tiro para um final de um deus menor.
A globalização de uma cultura que enalteça a amizade, o amor e a arte, libertando a emulação para o campo do jogo, tornará mais difícil que falsos profetas, loucos ou não, encontrem o húmus para as suas sementes. Talvez seja este o caldo de felicidade que os Homens dizem procurar!
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